O USO OFF LABEL DE MEDICAMENTOS

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Entenda porque medicações estão sendo adaptadas para a COVID-19

Autora: Pâmela Guimarães (@pamgguimaraes)

Revisores: Larissa Brussa (@laribrussa); Mateus Falco (@mateuslfalco)

  O termo “off label” é usado para designar a situação de adaptação do uso terapêutico de um medicamento para uma comorbidade diferente da qual ele foi originalmente desenvolvido. Embora sem tradução oficial para a língua portuguesa, a expressão ganhou destaque no contexto da pandemia da COVID-19, pois muito se discutiu sobre empregar medicamentos já registrados e aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em uma situação diferente das indicações expressas na bula para tratar uma doença [1]. De acordo com as diretrizes da ANVISA, essa prática pode ser considerada legal, porém é também de inteira responsabilidade do médico que a prescreve [2]. Nesse cenário, logo presenciamos a ascensão de fármacos que até então não tinham tanto destaque na mídia e que passaram a ser descritos como verdadeiras “promessas instantâneas de cura”. Essa divulgação levou a uma corrida às farmácias e drogarias e ao esgotamento dos estoques de medicamentos como cloroquina, hidroxicloroquina, nitazoxanida e ivermectina. Diante desses fatos, a ANVISA se viu obrigada a publicar a RDC 405, no dia 23 de julho de 2020 [3]. A norma estabelecia regras de controle específicas para prescrição, dispensação e escrituração para esses medicamentos durante a pandemia do novo coronavírus. A partir da promulgação desta RDC tais fármacos só poderiam ser comprados com receita médica em duas vias, sendo que uma delas ficaria retida no estabelecimento de venda. Essas medidas foram usadas na tentativa de conter a automedicação e resguardar os medicamentos para os pacientes que realmente necessitam para seus tratamentos.

Nesse ponto, como ainda se explica a adoção do uso de medicamentos off label? A justificativa é aquela mais evidente em um cenário de pandemia: a corrida contra o tempo. Observava-se uma urgência de um tratamento paliativo para os infectados, uma vez que para o desenvolvimento de um novo medicamento específico leva-se em média de 6 a 7 anos, desde a concepção até o lançamento no mercado do produto [4]. Nesse contexto, cientistas de todo o mundo começaram a debater sobre possíveis fármacos que poderiam auxiliar no tratamento da COVID-19. Em maio de 2020, foi publicado um estudo na revista The Lancet avaliando a possível eficácia da Hidroxicloroquina e Cloroquina, associadas ou não a antimicrobianos, como Azitromicina, para o tratamento da COVID-19, o qual foi responsável por grande parte das polêmicas que vemos até hoje [5]. Esse estudo mostrou que não foi possível confirmar um benefício da hidroxicloroquina ou da cloroquina, quando usadas sozinhas ou com um antimicrobiano, nos resultados hospitalares para COVID-19. Ainda, os medicamentos foram associados a uma redução da sobrevida do paciente e a um aumento da frequência de arritmias ventriculares. No entanto, em apenas um mês, após críticas de outros pesquisadores, a revista se manifestou publicamente retratando o estudo, pois a auditoria dos dados apresentados (dados de 96 mil pacientes em 671 hospitais de seis continentes), foi questionada [6;7]. Posteriormente o estudo concluiu que os fármacos não combatiam o SARS-CoV-2, além de possivelmente trazer complicações cardíacas. Esse ensaio, tirado de contexto, acendeu as primeiras faíscas para que os defensores de curas fáceis e os negacionistas da pandemia pudessem embasar seus argumentos, sem ao menos conhecer o fármaco e os mecanismos por trás dele. Então, explicaremos!

A hidroxicloroquina é uma aminoquinolina derivada da cloroquina, representada na Figura 1. É uma molécula com atividade antimalárica, imunossupressora e anti-inflamatória. Também tem uso amplamente difundido para tratamento anti-reumatológico no lúpus eritematoso sistêmico e na artrite reumatoide. Embora seu mecanismo de ação exato seja desconhecido, acredita-se que a hidroxicloroquina pode suprimir a função imunológica ao interferir no processamento e apresentação de antígenos e na produção de citocinas [8]. Cabe aqui um ponto: pacientes com COVID-19 grave apresentam uma ativação desregulada do sistema imune, representada pela produção exacerbada de diversas citocinas inflamatórias como interleucina-6 (IL-6) e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), o que caracteriza a chamada “tempestade de citocinas”. As características clínicas da tempestade de citocinas incluem sintomas como febre elevada sustentada, ferritina sérica (proteína produzida pelo fígado, responsável pelo armazenamento do ferro no organismo) elevada, triglicerídeos elevados, disfunção no fígado e esplenomegalia (aumento de tamanho do baço, um dos órgãos do sistema imune) [9]. Esses sintomas não aparecem na fase inicial da doença e nem se relacionam com a carga viral do início da infecção, então prescrever esse medicamento de maneira off label, como um tratamento precoce, não faz sentido. Por apresentar efeito de supressão da tempestade de citocinas em outras doenças como artrite reumatoide e lúpus eritematoso sistêmico, levantou-se a possibilidade que a hidroxicloroquina poderia suprimir a COVID-19 por inibir essa hiperativação do sistema imune desencadeada pelo vírus. Dessa forma, alguns pesquisadores acreditam que ela poderia diminuir a progressão da doença, porém essa hipótese, até hoje, ainda não teve comprovação clínica. Na realidade, hoje há um consenso entre diversos pesquisadores que os riscos de eventos adversos cardíacos associados ao uso off label da hidroxicloroquina para tratar a COVID-19 podem aumentar drasticamente, podendo causar ainda mais riscos para os doentes graves. Em resumo, apesar da hidroxicloroquina ter perfil de segurança conhecido para uso em patologias dermatológicas e reumáticas, ainda é grande a preocupação envolvendo sua cardiotoxicidade [8;9;10].

Figura 1 – Estrutura da molécula de hidroxicloroquina [8]

Exemplificando, um estudo realizado em maio de 2020 para testar a eficácia clínica da hidroxicloroquina em pacientes com pneumonia por COVID-19 que necessitavam do uso de oxigênio, atestou que o tratamento com o fármaco não parecia surtir efeito na redução das admissões em terapia intensiva ou nas mortes, 21 dias após a admissão hospitalar. Além disso, o tratamento também não teve nenhum efeito na sobrevida de pacientes sem Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) no 21º dia após a admissão hospitalar. Os resultados obtidos também foram insuficientes para comprovar a eficácia em diminuir a disseminação viral, o que impossibilitou chegar a uma conclusão nesse sentido. Outro estudo, também datado de maio de 2020, analisa o fármaco em pacientes com COVID-19 em quadros leves a moderados. Os desfechos avaliados foram se a hidroxicloroquina seria capaz de diminuir a carga viral em 28 dias de tratamento nos pacientes com quadro leve e se os pacientes graves teriam melhora clínica em 28 dias de tratamento. No entanto, como o ensaio foi interrompido precocemente e apenas dois pacientes com doença grave foram inscritos, os resultados da melhora clínica não são apresentados. Os resultados não mostraram benefícios adicionais na eliminação do vírus com a adição de hidroxicloroquina ao tratamento em pacientes com COVID-19, principalmente das formas leve a moderada. Vários outros estudos disponíveis também atestam a ineficácia do medicamento, como o estudo Solidariedade (Solidarity) publicado pelo New England Journal of Medicine a pedido da Organização Mundial da Saúde (OMS). 

Após a confusão com a hidroxicloroquina, algo semelhante ocorreu em relação a outro fármaco: a ivermectina. A ivermectina é uma lactona macrocíclica, um produto derivado e produzido pela bactéria Streptomyces avermitilis, sendo uma droga com atividade antiparasitária e potencial antiviral.  Entre as parasitoses já tratadas pelo medicamento estão sarna, oncocercose, ascaridíase e filariose linfática (elefantíase). A estrutura química da molécula pode ser visualizada na Figura 2.

Figura 2 – Fórmula Molecular da Ivermectina [14]

Lactonas macrocíclicas são compostos precursores importantes na química medicinal.  Sua estrutura química peculiar permite a interação com uma vasta gama de alvos moleculares e produz diversas ações biológicas. O efeito antiparasitário da ivermectina é obtido por ligação e ativação de canais de cloro dependentes de glutamato (GluCls) presentes nas membranas celulares de neurônios e células musculares da faringe de vermes nematóides, o que resulta na paralisia e morte do parasita. Além disso, embora a ação biológica primordial da droga se dê sobre canais iônicos dos parasitas helmínticos, sua atividade in vitro contra vírus de RNA e DNA, como vírus da imunodeficiência humana (HIV), vírus da dengue, vírus da encefalite equina venezuelana, vírus da influenza, vírus da febre amarela e vírus da pseudo-raiva, é conhecida há quase uma década [14;15]. Devido ao conhecimento dessa propriedade antiviral conduziu-se um estudo australiano em abril de 2020 com a ivermectina [16;17], o qual infelizmente foi tirado de contexto e seus efeitos danosos ainda estão presentes. O título do estudo traduzido à risca seria “O medicamento aprovado pela FDA ivermectina inibe a replicação do SARS-CoV-2 in vitro”. A afirmação já foi suficiente para a confusão ser feita e causar um alarde mundial sobre o medicamento. Nesse ensaio, cientistas infectaram células in vitro e analisaram a replicação do SARS-CoV-2 nas células que receberam doses muito altas de ivermectina, usando a técnica de RT-PCR. Comparativamente, em 24 horas, observaram redução de replicação viral em 93% nas células tratadas com o fármaco em relação a outras células controle (não tratadas). Após 48 horas, a redução da replicação viral nas células foi de aproximadamente 5.000 vezes, demonstrando que o tratamento in vitro com ivermectina conseguia eliminar essencialmente quase todo o material viral. O estudo então concluiu que a ivermectina possui ação antiviral contra o SARS-CoV-2, causador da COVID-19, IN VITRO. É de EXTREMA importância frisar que os estudos conduzidos com o fármaco, publicados em revistas científicas renomadas e revisadas por pares, até o momento demonstraram resultados promissores contra vírus in vitro, e não in vivo, ou seja, os resultados positivos não se deram no interior de animais e nem de humanos. E ainda assim, este estudo mencionado acima utiliza doses muito superiores às doses prescritas para humanos. Nos últimos anos, apenas um estudo clínico avaliou o medicamento na infecção pelo vírus da dengue e não obteve qualquer eficácia clínica. Em relação à COVID-19, como descrito neste outro texto da Rede aqui, ainda faltam dados que atestem a eficácia do medicamento para uso em seres humanos, sendo importante responsabilizar os médicos e pacientes que fazem seu uso profilático baseado apenas em manchetes fantasiosas, achismos e uma dosagem ineficaz.

Por fim, a última promessa de medicamento milagroso a ser abordada é a nitazoxanida, mais conhecida por seu nome comercial Annita®. A substância é um vermífugo de amplo espectro, usado para o tratamento de infecções gastrointestinais. Ele apresenta eficácia em gastroenterites virais provocadas por rotavírus ou norovírus, helmintíases, amebíase, giardíase, criptosporidíase, blastocistose, balantidíase e isosporíase. A nitazoxanida pertence à classe de medicamentos conhecidos como tiazolídeos e é uma nitrotiazolil-salicilamida [19;20]. Sua estrutura molecular está representada na Figura 3.

Figura 3 – Fórmula molecular da Nitazoxanida [19]

Acredita-se que sua atividade antiprotozoária se dê na interferência da enzima Piruvato Ferredoxina Oxidorredutase (PFOR) no parasita, a qual é essencial para promover seu metabolismo energético, ou seja, vital para a sobrevivência do parasita. No entanto, é possível que este não seja o único meio através do qual a nitazoxanida exerça a sua atividade, pois há outros mecanismos ainda não totalmente esclarecidos. A ação sobre vírus se dá através da inibição da síntese da estrutura viral, bloqueando a habilidade do vírus de se multiplicar [20;21].

Assim, devido à sua capacidade de agir contra vírus, a droga também passou a ser alvo de investigação como potencial medicamento contra o SARS-CoV-2. O primeiro boato envolvendo a nitazoxanida se tornou popular após o ministro da ciência e tecnologia Marcos Pontes afirmar que um “remédio promissor entraria na fase de estudos clínicos”. Segundo o ministro, essa medicação mostrava-se eficaz em 94% nos testes in vitro contra o SARS-CoV-2. Logo o medicamento em questão foi revelado como sendo a nitazoxanida, o que obrigou a ANVISA a incluir a medicação na lista de remédios controlados [22]. O equívoco cometido aqui foi similar ao caso mencionado acima: tomou-se como base apenas os resultados encontrados in vitro e já se elegeu o fármaco como promissor. Deve-se sempre ponderar que nem todas as vezes o mesmo comportamento é também verificado in vivo, sendo necessário estudos mais robustos.

Um estudo financiado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), publicado pela European Respiratory Journal, relata que a nitazoxanida não acarretou diminuição dos sintomas após terapia de 5 dias, mas que reduziu a carga viral em amostras de esfregaço nasofaríngeo. O que podemos concluir sobre isso? Conforme explicado por outro texto da rede, o estudo ainda não permite concluir que a nitazoxanida é eficaz para tratamento da COVID-19,  devido a ausência de melhora efetiva dos sintomas. 

CONCLUSÃO

É muito importante a ciência e o jornalismo estarem alinhados quanto à interpretação e divulgação de dados. Assim é possível evitar a criação de notícias errôneas que causam alarde na população e corroboram para o crescimento da onda negacionista. Diante dos estudos publicados, constata-se que os medicamentos que vêm sendo tratados como promessas de cura da COVID-19 NÃO FUNCIONAM para esse fim. A essa altura, a única medida mais promissora capaz de frear os casos ainda é a vacinação de todos. 

 REFERÊNCIAS

[1] https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102012000200026

[2] https://sergiopontes.jusbrasil.com.br/artigos/623260364/o-que-sao-medicamentos-off-label-e-quando-seu-uso-e-possivel-segundo-o-stj

[3] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-de-diretoria-colegiada-rdc-n-405-de-22-de-julho-de-2020-2681923427

[4] PHRMA, 2015. Biopharmaceutical Research & Development: The Process Behind New Medicines.

[5] https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31180-6/fulltext

[6] https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31528-2/fulltext

[7] https://www.bbc.com/portuguese/geral-52930383

[8]  https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/3652 

[9] https://www.sanarmed.com/tempestade-de-citocinas-na-covid-19 

[10] https://periodicos.unichristus.edu.br/jhbs/article/view/3206 

[11] https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1844

[12] https://www.bmj.com/content/369/bmj.m1849 

[13] https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMoa2023184 

[14] https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/Ivermectin

[15] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7417290/

[16] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0166354220302011

[17] https://www.sanarmed.com/fake-news-ivermectina-e-a-cura-contra-a-covid-19

[18] https://redeaanalisecovid.wordpress.com/2020/12/22/ivermectina-sera-mesmo-a-droga-milagrosa/

[19] https://pubchem.ncbi.nlm.nih.gov/compound/Nitazoxanide#section=Structures

[20] https://www.saudedireta.com.br/catinc/drugs/bulas/annita.pdf

[21] https://www.bulas.med.br/p/detalhamento-das-bulas/1270063/caracteristicas+farmacologicas+annita.htm

[22] https://www.sanarmed.com/fake-news-nitazoxanida-annita-covid-19

[23] https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/noticias/2020/12/nitazoxanida-estudo-clinico-e-publicado-no-european-respiratory-journal

[24] https://erj.ersjournals.com/content/early/2020/12/17/13993003.03725-2020 

[25] https://redeaanalisecovid.wordpress.com/2020/10/23/o-que-o-preprint-do-estudo-da-nitazoxanida-esta-nos-dizendo/

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