Reabertura das Escolas?

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Autores: Fernando Kokubun (@fernandokokubun), Isaac Schrarstzhaupt (@schrarstzhaupt), Mellanie Dutra (@mellziland), Luciana Santana (@lucfsantana1812)

Revisores: Thomaz Arruda (@thomazaw), Larissa Brussa Reis (@laribrussa), Rute Maria Gonçalves-de-Andrade (@rutemga2)

Adaptada: Alunos são dispensados por falta de água em escola de Sorocaba — Foto: Diogo Molina/Arquivo Pessoal

Em maio deste ano, publicamos na Rede Análise Covid-19 um texto sobre a reabertura das escolas [1], com base nas informações disponíveis na época. Lembrando que algumas escolas na Europa estavam retornando às atividades, e aqui no Brasil, a discussão era sobre a retomada das aulas no mês de junho. Em maio, três meses após os primeiros casos no Brasil, as taxas de contaminação e de óbitos não mostravam uma indicação de estabilização ou de queda, o distanciamento social teve pouca adesão, tendo o efeito proporcional à essa adesão (ou seja, foi pequeno), e a disponibilidade de testes era insuficiente para a população. Além disso, outro estudo importante publicado no renomado periódico JAMA Pediatrics foi comentado aqui na Rede em agosto. Esse estudo trouxe novas informações bastante significativas envolvendo o comportamento do vírus SARS-CoV-2 (novo coronavírus) em crianças. Condições importantes que indicavam que o retorno proposto, não era adequado.

Hoje, o retorno às aulas na modalidade presencial é um tema que voltou a estar presente nas pautas de muitos Estados e Municípios. Lembremos que muitas escolas, em diversos estados e  municípios, tentaram se adaptar rapidamente à nova realidade e mantiveram as suas aulas com atividades remotas, cada uma dentro da sua realidade, de forma que não paralisaram completamente suas atividades. Em relação às universidades públicas, a maioria retornou com aulas online e outras estão se organizando para o retorno remoto. No entanto, as aulas presenciais não foram retomadas até o momento. O que mudou de maio até setembro, para que os governos subnacionais comecem a discutir o retorno às aulas no formato presencial? Quais os parâmetros para um retorno? É o que iremos discutir neste texto. 

Diversos estudos foram feitos durante esse período, e não apresentaram dados totalmente conclusivos, que sirvam, efetivamente, para termos uma resposta certeira sobre o tamanho do risco deste retorno. Existem inúmeros parâmetros que devem influenciar a decisão de retorno às aulas presenciais, como a taxa de transmissão entre crianças e adolescentes (de 0 a 14 anos), a quantidade de crianças que moram com e/ou são criadas pelos avós (esta é uma característica bastante distinta em cada país e que dificulta a comparação) e a capacidade de monitoramento e fiscalização dos protocolos adotados. Um estudo recente da literatura mostrou que os jovens investigados, que apresentaram sintomas leves de COVID-19 tiveram cargas virais maiores do que adultos hospitalizados. Esses jovens podem representar uma fonte potencial e “silenciosa” de contágio na pandemia da COVID-19, pois  apesar das características da doença se manifestarem de forma mais branda ou até mesmo estarem ausentes nos jovens, essas características os tornam vetores importantes. Este panorama deve ser considerado ao se avaliar a possibilidade de retorno às aulas de modo presencial. Além de avaliar a reabertura com o máximo de segurança e proteção possível, segundo orientações e análises contidas a partir da literatura, também fazê-lo em um momento de maior controle e administração da transmissão do novo coronavírus. Acompanhe conosco algumas evidências nesse sentido, a seguir.

O Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos da América (CDC-EUA) [2] possui uma seção que informa alguns indicadores para a tomada de decisão do retorno das aulas.


Ao analisarmos esses indicadores, podemos perceber a clara necessidade de um plano com alto nível de organização e aderência (que todos cumpram o combinado) para que possamos, então, ter um risco baixo (diferente de não existente) de contaminação.

Falando em risco baixo, vamos fazer juntos uma estimativa de possíveis resultados de um retorno às aulas. Faremos uma estimativa otimista:

  • O censo escolar do estado do Rio Grande do Sul [3] nos indica que, no ano de 2017, tínhamos 186.146 alunos matriculados na categoria “creche” (0 a 4 anos), em todas as esferas (municipal, estadual, federal e particular).
  • Estimando que 30% destes alunos irão se infectar com o SARS-CoV-2, temos um total de 55.843 crianças infectadas.
  • A letalidade de casos confirmados do RS em 15/09/2020 é de 0,08% (2 óbitos para 2.404 infectados), mas como sabemos que os mais novos são em grande parte assintomáticos e, portanto, não testados, iremos reduzir a letalidade estimada para  25% desta, ou seja, 0,02%.
  • Aplicando, então, 0,02% de letalidade a um contingente de 55.843 crianças, temos 11 óbitos estimados, apenas no estado do RS, levando em consideração o percentual de que apenas 30% das crianças matriculadas na categoria “creche” irão se infectar, e utilizando os dados do ano de 2017.

Esta estimativa, por mais otimista que seja, nos traz um resultado nada aceitável. Se expandirmos para todo território nacional , o número estimado só aumenta: no censo escolar nacional [4], temos 9 milhões de estudantes de educação infantil. Fazendo o mesmo cálculo que fizemos para o estado do RS, chegaríamos a 540 óbitos, apenas na educação infantil.

Além da infecção dos alunos, temos também as consequências indiretas: a infecção dos funcionários das escolas, dos pais, avós e familiares ou responsáveis próximos dessas crianças. Temos, até o ano de 2010, uma proporção de aproximadamente 12% de domicílios no Brasil que possuem três gerações residindo juntas [5]. 


Temos também alguns exemplos do que aconteceu no ambiente escolar após as reaberturas. É importante frisar aqui que os dados existentes são de países desenvolvidos, onde o sistema educacional conta com melhores recursos e organização. Em Israel [6], as escolas foram fechadas no dia 13/03/2020 e autorizadas a reabrir no dia 17/05/2020, com todos os protocolos possíveis de segurança (distanciamento, uso de máscaras, interação mínima entre turmas, higiene e tudo mais). Dez dias depois (26/05/2020) ocorreu o primeiro surto grande em uma escola. Ao testar, os dados foram os seguintes:

  • Estudantes totais: 1.164
  • Estudantes testados: 1.161
  • Estudantes infectados: 153 (13,2%)
  • Estudantes com sintomas: 66 (43,1% dos infectados)
  • Funcionários/professores totais: 152
  • Funcionários/professores testados: 151
  • Funcionários/professores infectados: 25 (16,6%)
  • Funcionários/professores com sintomas: 19 (76% dos infectados)

O que foi encontrado durante a investigação epidemiológica deste surto? Algumas situações, como o funcionamento quase ininterrupto do ar condicionado (período de ondas de calor), a dificuldade de executar o distanciamento entre estudantes e professores na prática (sendo esta a maior problemática identificada no distanciamento entre os estudantes das turmas de menor idade), contribuíram para o surto. Sabemos que problemas como esses  não são exclusivos de Israel, mas sim compartilhados por todos os países.

Além disso, este surto, conforme previsto, acabou se espalhando para a comunidade. Vejam o gráfico abaixo [6] que demonstra o que aconteceu no dia 14/06/2020, 19 dias após o dia 26/05/2020, que foi a data de contaminação das faixas etárias mais baixas:

Esse exemplo levou outros países a tentarem a reabertura de escolas com maiores precauções: máscaras obrigatórias, limitando a interação dos alunos, ou tentando a reabertura apenas com as crianças mais novas presentes ou por apenas um dia por semana.

Nos Estados Unidos, as escolas estão muito próximas de experimentar a reabertura presencial, segundo reportagem do New York Times. Um estudo publicado na American Academy of Pediatrics aponta que os casos cumulativos praticamente  dobraram no último mês: entre 9 de julho e 13 de agosto, o número aumentou de cerca de 200.000 para mais de 406.000. A reabertura física de escolas pode contribuir para acelerar esse crescimento  – potencialmente elevando  o número de crianças com sintomas graves e estimulando a disseminação entre a comunidade em geral, alerta feito pela revista de divulgação científica Scientific American. Além do alerta, essa reportagem também traz uma discussão importante: tanto o ensino remoto, quanto o ensino presencial têm consequências negativas: “O novo coronavírus que causa a COVID-19 pode se espalhar pelos corredores e salas de aula fechados de um prédio escolar. Mas a dependência prolongada de aprendizagem virtual por si só pode interromper o desenvolvimento educacional e social de uma criança e pode ter repercussões econômicas graves a longo prazo”. Naturalmente, é uma discussão acirrada e não há uma saída fácil para conclusões.

Segundo um artigo da revista Nature, além de medidas como a utilização de máscaras, salas de aulas com reduzido número de alunos e os protocolos de higiene já conhecidos, a baixa transmissão comunitária é considerada um fator chave para a reabertura segura das escolas. Isso porque em locais com uma alta transmissão comunitária, a possibilidade de novos surtos e do aumento do número de mortes decorrente desse processo de reabertura é imensa. Situação que foi evidenciada nas escolas de Israel e dos Estados Unidos conforme discutido anteriormente. O artigo também relata a experiência da Coreia do Sul, a qual retornou às aulas presenciais em maio, quando os casos diários confirmados de pessoas com COVID-19 foi reduzido a menos de 50 — o que corresponde cerca de 1 caso por milhão de habitantes. Este cenário, considerando a realidade brasileira, está bem distante de ser alcançado tendo em vista que os casos diários confirmados no Brasil continuam na casa das dezenas de milhares.  

Naturalmente, não há uma regra ou padrão universal para essa reabertura. As condições em que cada local se encontra na pandemia são diversas, especialmente quando consideramos um país de proporções geográficas gigantescas e com vários surtos pontuais de COVID-19, como o Brasil. Além disso, temos a questão das diferentes realidades financeiras e sanitárias somada à capacidades de aprendizado a distância que diferem entre alunos mais jovens e mais velhos, dentre outros desafios. O ano escolar vai requerer constantes mudanças e adaptações, como por exemplo a flexibilização da carga horária, com a validação das atividades à distância. Por meio da aprovação da medida provisória nº 934, de 1º de abril de estabeleceu-se normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes da pandemia, com a flexibilização da carga horária obrigatória anual, bem como de dias letivos para cumprimento da mesma. 

As decisões quanto à abertura das escolas cabem aos governos subnacionais, estados e municípios. Entretanto, torna-se necessário a coordenação das políticas públicas de educação, saúde e assistência social por parte do governo federal, orientando e acompanhando as ações a serem adotadas por gestores em todo o país, além da disponibilidade de recursos necessários para a execução de ações. A ausência de recursos e de políticas coordenadas pode elevar os riscos para um aumento do número de casos e de óbitos no país. 

Considera-se, portanto, que além da articulação federativa entre os governos para a definição das estratégias de ação, os protocolos de retomada das aulas devem estar sob constante vigília e contarem com a capacidade de responder prontamente no momento em que a dinâmica dos novos casos da pandemia mudar. Manter as escolas e outras atividades essenciais seguras envolve manter a transmissão comunitária baixa. Apesar das pressões de reabertura, enquanto essa transmissão não alcançar níveis mais reduzidos, não é recomendada a reabertura total e concessões deverão sempre ser realizadas com base nas evidências científicas do momento.

Estes dados contribuem para o entendimento de que uma onda de contaminação no público mais vulnerável poderá ser uma consequência concreta da exposição de crianças e adolescentes suscetíveis ao SARS-CoV-2. Essa exposição aumentará muito com a abertura das escolas em um período no qual a epidemia ainda não está sob controle, e não possuímos tratamento e nem vacinas disponíveis para a proteção deste público.

Referencias

[1] Voltar ou não voltar para as aulas? https://redeaanalisecovid.wordpress.com/2020/05/27/voltar-ou-nao-voltar-para-as-aulas/

[2] CDC dos EUA https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/community/schools-childcare/indicators.html

[3] Censo escolar do Rio Grande do Sul https://servicos.educacao.rs.gov.br/pse/srv/estatisticas.jsp?ACAO=acao1

[4] Censo escolar do Brasil http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=148391-pcp011-20&category_slug=julho-2020-pdf&Itemid=30192

[5] Avós que residem com netos: características dos arranjos doméstico-familiar multigeracionais no Brasil a partir de  1990

[6] Dados sobre o surto de Israel na reabertura das escolas https://www.eurosurveillance.org/content/10.2807/1560-7917.ES.2020.25.29.2001352?mc_source=MTExMDY2Ojo6OTgxM2NkZDM4OGRjNGFlM2JhY2RhNWIyZTNlODhkOTE6OnYzOjoxNTk2NDc1MjIzOjox#html_fulltext

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